13/06/2017 19:50
Quando se fala em literatura Cyberpunk ¹ , geralmente, nos deparamos com o livro Neuromancer e dois autores seminais do movimento: William Gibson e Bruce Sterling. Enquanto o primeiro conta com duas trilogias completas e disponíveis em edições nacionais, o segundo possui apenas um romance solo publicado por aqui: Tempo Fechado, uma vez que escreveu A Máquina Diferencial junto com William Gibson (obra com temática Steampunk ². Já Piratas de Dados, lançado no Brasil em 1990, está fora de catálogo. Além disso, existem três noveletas ³ disponíveis: Cisne Negro, O bisturi napolitano e O Consertador de Bicicletas. Esta última está presente justamente neste livro de bolso que resenho aqui, que conta também com a noveleta Vale-Tudo, do autor brasileiro Roberto de Sousa Causo, que possui vários títulos disponíveis tanto na forma impressa quanto digital, também atuou como editor em coletâneas e antologias.
Antes de tudo, é preciso dizer que trata-se, literalmente, de um livro de bolso! Sem dúvida, é o menor livro que possuo (salvo algum exemplar do Novo Testamento dos Gideões que, eventualmente, tenha aqui em casa). Ele tem as as seguintes dimensões: 15 x 8,8 x 1 cm, nem mesmo os livros da editora L&PM que possuo são tão pequenos. Faz parte de uma coleção da Editora Devir chamada Asas do Vento. É o tipo de livro ideal para quem gosta de ler fora de casa e que pode ser facilmente carregado e guardado, devido a seu pequeno volume.
Fico pensando como seria bacana se houvessem mais iniciativas como esta e, quem sabe, disponibilizá-los naquelas máquinas de livros do metrô. É também um formato que parece ser bem viável para se lançar contos e noveletas de forma mais “avulsa”, pois, geralmente encontramos contos somente em antologias, estas dispostas em livros maiores e bem mais caros. O ponto positivo que vejo é o seguinte: lançando contos ou noveletas avulsos, se garantiria a tradução de diversos títulos e, eventualmente, poderiam ser lançadas antologias com os melhores ou mais bem cotados, num segundo momento.
INTRODUÇÃO
Na Introdução, escrita por Jeremias Moranu, é realizada uma retrospectiva do Cyberpunk, desde os seus primórdios, citando seus principais autores e obras. Também é dada atenção especial ao que se produziu no Brasil, sejam nas obras assumidamente Cyberpunks ou aquelas que guardam alguma relação bem significativa, ainda que seus autores repudiem o rótulo. E, por último, o que pode ser chamado de pós-cyberpunk.
Minha dica aqui é prestar atenção nas obras e autores referenciados e correr atrás do material, em especial dos brasileiros. Muitas obras de autores nacionais passaram batido à época de sua publicação ou ficaram restritas a um nicho. De minha parte, cito o exemplo de Fausto Fawcett, que é lembrado até hoje pela sua carreira de cantor, por causa da música Kátia Flávia, A Godiva do Irajá, de 1987. Ao menos duas obras deste autor foram relançadas pela Editora Encrenca. Citei apenas um exemplo, mas vale a pena pesquisar e conhecer todos autores citados.
O CONSERTADOR DE BICICLETAS (BRUCE STERLING)
Na época em que conheci o termo Cyberpunk (acredito na segunda metade dos anos 90) minha principal referência estilística foi o filme Blade Runner (dependendo de quando você estiver lendo isto, me refiro ao filme de 1982, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Harrison Ford). Depois que o filme Matrix foi lançado, frequentemente saíam matérias em revistas abordando suas referências e influências, fatalmente se falava em Neuromancer, de William Gibson e, nos textos que buscavam aprofundar o assunto um pouco mais, invariavelmente aparecia o nome de um “tal” Bruce Sterling.
Durante muito tempo, Bruce Sterling foi apenas um nome gravado em minha mente de forma abstrata. Sem o traquejo necessário para pesquisas, desconhecendo os nomes de suas obras e se havia ou não algo lançado no Brasil, se passaram anos, talvez uma década até que eu tivesse o primeiro contato com sua obra, que foi Piratas de Dados (Islands in the Net). Minha primeira impressão foi decepção: senti falta daquela ambientação ligada diretamente à tecnologia, ao ciberespaço, como ocorre em Neuromancer, por exemplo. Por outro lado, comecei a notar outras qualidades de Sterling: um ambiente mais realista, tocando mais em questões sociopolíticas e, ainda assim, trazendo pequenos detalhes tecnológicos e até proféticos. O principal deles: o uso militar de drones!
Em O Consertador de Bicicletas, vemos claramente como Sterling encaixa bem o contexto de um futuro próximo, do ponto de vista de um personagem “comum” (sim, o cara é realmente um consertador de bicicletas!). Fazendo jus ao formato de noveleta, não se perde tempo com longas narrações e contextualizações, tudo é colocado de forma orgânica.
Acompanhamos o cotidiano de Lyle e suas interações com outros personagens, apenas como meros espectadores, ou seja: quando os personagens dialogam o fazem de forma natural, nada de conversas voltadas para explicar algo ao leitor. Dentro destes diálogos, são abordados alguns temas viscerais sobre comportamento humano e cultura, trazendo uma certa crítica ou, ao menos, reflexão acerca dos padrões tidos como normais e que, muitas vezes, seguimos sem questionar ou concordar.
Notei, talvez, uma certa analogia à uma “ética hacker” extrapolada, numa visão semelhante ao da pesca esportiva. A questão política é frequentemente levantada, aqui, o NAFTA passa de bloco econômico para uma Federação, com Constituição própria. O protagonista, não é lá muito ligado às questões políticas acaba até cometendo algumas gafes, são feitas piadas sobre a frequente alternância de poder em alguns estados a despeito da conservância em outros.
Existe uma ambientação e discussão que remete muito ao cenário que temos hoje: matizes ideológicas, direita e esquerda, anarquismo, espionagem na política, provas obtidas de forma ilícita etc.
O que mais me impressionou durante a leitura é a capacidade que Bruce Sterling tem de “prever” o futuro. Esta noveleta foi escrita em 1997, dois anos antes do Tratado de Kyoto ser assinado e já abordava algo relacionado aos Créditos de Carbono (usando outra nomenclatura, mas com o mesmo sentido). Também a forma de consumir conteúdo multimídia que temos hoje.
A impressão que tenho é a de que Bruce Sterling entrou numa máquina do tempo, viajou uns 20 anos no passado, escreveu esta noveleta com memórias recentes do “futuro” e reavivou as memórias do seu passado com esta viagem temporal, pois, tanto a sua visão de “passado”, quanto a de “futuro” são bem críveis (por conta dos detalhes) e nos envolvem profundamente na história.
Quanto ao final, que não irei revelar, não me agradou muito. Mas é bem cabível para uma história curta. No mais, fiquei muito satisfeito. Por favor, Devir, traga mais histórias curtas neste formato, o público brasileiro carece de traduções deste tipo de material.
VALE-TUDO (ROBERTO DE SOUSA CAUSO)
É meu primeiro contato com a obra deste autor brasileiro. Apesar de ter uma certa sintonia com a história anterior, de Sterling (são histórias independentes), em Vale-Tudo temos uma ambientação e trama que nos remete mais à Trilogia do Sprawl, de William Gibson.
Houve uma migração em massa do Rio de Janeiro para São Paulo, por conta de um acidente nuclear na usina de Angra dos Reis. Logo, temos o típico elemento de superpopulação, recorrente no universo Cyberpunk.
Interessante ver o exercício de “futurologia”, mostrando várias marcas, como JAC, demonstrando a grande penetração de empresas chinesas no mercado brasileiro. Na trama, Jareen Jackson, uma repórter estrangeira tem a tarefa de entrevistar André Mattar (confesso que não consegui desassociar o nome a um certo ator de novelas que, fatalmente, acabou sendo meu referencial visual para o personagem!), um ex-militar e ex-lutador de Vale-Tudo (o que conhecemos hoje como MMA), que se tornou uma celebridade, apresentando reality shows.
Basicamente, André Mattar sofreu uma grave lesão no joelho, que o retirou do mundo das lutas. Com o convite para o reality show, pretendia usar o dinheiro para fazer uma cirurgia e reabilitá-lo no esporte, porém o tempo passa e ele acaba voltando seus interesses para algo totalmente diverso.
Claro que há muita desconfiança, conspirações e, como em Count Zero (William Gibson), temos uma mistura interessante entre tecnologia e religiões de matriz africana. Neste ponto, a cultura brasileira tem um vasto território que pode ser explorado, aproveitando todo esse sincretismo religioso para criar, digamos, um “sincretismo literário”, possibilitando a produção de histórias de ficção científicas abrasileiradas, mas sem soar galhofa.
Ao contrário da história de Sterling, em Vale-Tudo há uma divisão de capítulos e aqui temos um detalhe simples, mas digno de aplausos: ao invés de Capítulos numerados em 1, 2, 3, 4… temos uma numeração em código binário (só não sei dizer se a notação está correta), isso me fez lembrar de Os Dias da Peste (Fábio Fernandes), no qual ao lado da numeração das páginas existem códigos de barras e no lugar da palavra “FIM”, temos a frase “Seu computador já pode ser desligado com segurança” (remetendo à mensagem exibida nos antigos PCs, com fonte AT).
Um recurso de estilística usado é a linguagem coloquial e abreviações. Como dito é estilo, mas confesso que esse tipo de coisa me causa um certo estranhamento na leitura. Particularmente, prefiro mais os neologismos, vocabulários novos a este recurso de abreviação. Dentro dos diálogos, senti que o livro carece de algo que elogiei anteriormente em O Consertador de Bicicletas: senti que, em alguns momentos, o diálogo de alguns personagens soa artificial, parecendo que querem apenas contar algo ao leitor ao invés de “mostrar” naturalmente.
Apesar de ter gostado da história, algo que tirou minha imersão em alguns momentos foram erros de digitação, algo que já notei em outras publicações da Devir. Por exemplo: “jui-jitsu” ao invés de “jiu-jitsu”, “enhuma” ao invés de “Nenhuma”, “maiôs” no lugar de “mais”. O sobrenome “Mattar” uma vez aparece como “Matar”. Nos créditos, vi que não aparece o nome de nenhum revisor. É algo que a Devir pode melhorar, ainda que incomode, não chega a estragar a experiência.
Vale-Tudo possui um clima mais frenético em relação a O Consertador de Bicicletas, apesar dos problemas que citei é bem empolgante. Possui algumas sacadas legais envolvendo certos trocadilhos com o título da noveleta, também com o nome de um personagem mitológico e um certo lutador brasileiro de MMA.
Em suma, não obstante as ressalvas quanto ao final da primeira história e alguns problemas técnicos na segunda, fiquei satisfeito com este Duplo Cyberpunk, uma experiência bem legal e que me fez ver com outros olhos a leitura de contos e noveletas, dos quais tinha um certo preconceito. É um ótimo formato para se ler sem um grande comprometimento de tempo e que nos permite conhecer o estilo de autores para, quem sabe, fazer depois a leitura de uma obra maior, como um romance.
NOTAS
[1] Cyberpunk, de acordo com a definição da Wikipédia: Cyberpunk (de Cyber(netic) + punk) ou Cibernarquismo[1] é um subgênero de ficção científica, conhecido por seu enfoque de “Alta tecnologia e baixa qualidade de vida” (“High tech, Low life”) e toma seu nome da combinação de cibernética e punk.[2] Mescla ciência avançada, como as tecnologias de informação e a cibernética junto com algum grau de desintegração ou mudança radical na ordem social.[3] De acordo com Lawrence Person: “Os personagens do cyberpunk clássico são seres marginalizados, distanciados, solitários, que vivem à margem da sociedade, geralmente em futuros distópicos onde a vida diária é impactada pela rápida mudança tecnológica, uma atmosfera de informação computadorizada ambígua e a modificação invasiva do corpo humano.”
[2] Steampunk, de acordo definição exposta na Wikipédia: Steampunk também conhecido como Tecnavapor (diminutivo de ‘’Tecnologia a Vapor’’) é um subgênero da ficção científica, ou ficção especulativa, que ganhou fama no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Trata-se de obras ambientadas no passado, no qual os paradigmas tecnológicos modernos ocorreram mais cedo do que na História real (ou em um universo com características similares), mas foram obtidos por meio da ciência já disponível naquela época — como, por exemplo, computadores de madeira e aviões movidos a vapor. É um estilo normalmente associado ao futurista cyberpunk e, assim como este, tem uma base de fãs semelhante, mas distinta.
[3] Noveleta: Em ordem de tamanho (quantidade de palavras): Conto → Noveleta → Novela → Romance.